Não saio mais de casa, faz tempo, anos.
Não porque não quero, mas porque tenho que ficar ao lado do meu telefone.
Ele é pesado, preto e ocupa a posição central da minha sala, fica em cima de uma mesinha só sua.
Tem sido meu grande companheiro, por mais que seja quieto.
Na maioria das vezes ficamos num clima quase solene.
Fico sentado ao seu lado durante todo o dia na minha velha poltrona, pois sei que um dia tocará e preciso estar lá para atender ao seu chamado.
Tive muito dinheiro e muitos amigos.
Mas agora os tempos são outros, envelheci.
Meus filhos não vejo há certo tempo, pois trabalham muito e estão sempre ocupados, não posso exigir nada, não quero atrapalhá-los.E minha mulher se foi faz tantos anos que já não sei mais precisar quantos.
Desde então espero um contato do mundo de fora, de velhos amigos que não me procuram desde que meu dinheiro e as festas se foram, e de meus filhos que já dividi a herança do restante que sobrou.
Meus únicos contatos com o mundo são a televisão e a faxineira que vem toda quarta-feira para arrumar a minha casa e fazer as compras necessárias.
Passo o dia na sala, em frente à televisão e ao lado do telefone, sentado na minha velha poltrona.
Há certos dias que quando acordo sei que vai tocar, então fico com um sorriso guardado, lágrimas prontas e o coração palpitante durante cada minuto do dia, pois ele pode tocar a qualquer momento.
São os dias mais emocionantes para mim.
Apesar de quase sempre eu acabar o dia decepcionado, sentado ao seu lado quieto à espera, com as lágrimas não mais guardadas.
Um dia ele realmente tocou, quase não acreditei, seu toque é forte, como badaladas de sinos de uma igreja, acredito que se ouve da rua.
Fiquei hesitante, pensei em deixar que tocasse até a pessoa desistir.
Não pude, esperava-o há tanto tempo, deixei apenas tocar bastante.
Saboreava cada toque, parecia que ouvia o bater do meu próprio coração.
Pigarreei para não aparentar que não falava há dias, e que felicidade sentia, alguém se lembrara de mim, há quanto tempo não me sentia assim, então finalmente atendi.
Por um momento houve um silêncio, meu coração parou, quem seria? Após isso uma moça perguntou-me o nome, a idade, e disse-me que eu precisava de um certo aparelho para fazer suco e que assim poderia receber melhor os amigos, até pensei em comprar, pois não teria o que oferecer caso meus amigos viessem, mas devido ao valor não pude.
A moça me agradeceu e me desejou um ótimo dia.
Desliguei, foi como um balde de água fria.
Estava feliz por conversar com alguém, mas ao mesmo tempo era alguém que não se importava comigo, eu era um dentre milhares de uma lista.
Fiquei sentado ao seu lado o resto do dia, porém dessa vez com o volume da televisão bem mais alto, não queria ouvir aquele silêncio.
Tem bastante tempo que isso ocorreu.
Lembrei disso porque hoje é um dia que acordei com aquela sensação, sei que vai tocar.
Todos aqueles sentimentos de esperança estão transbordando em mim.
Tenho tantas coisas a falar para tanta gente.
Preciso perguntar como estão, o que fizeram durante esses anos.
Sei exatamente o texto que falarei a cada pessoa que aguardo me ligar.
Hoje também é dia da faxineira vir, gosto quando vem, pois como comida nova, não a congelada que deixa pronta para mim durante uma semana.
E tenho também quem me dê bom dia e me pergunte se eu dormi bem e tomei meus remédios.
Mas ela sempre se atrasa, diz que o ônibus demora, então ainda não chegou.
Mesmo com toda essa ansiedade e agitação típica de um dia de quarta-feira, não me sinto tão bem, não consigo levantar da cama, quase não tenho força, devo ter me esquecido de tomar o remédio.
Preocupo-me com o telefone sozinho na sala. Ele precisa de companhia.
Depois de algum tempo juntando força e impulsionado pela minha esperança, finalmente consigo levantar.
Já estou velho, a idade não aliviou para mim.
Caminho em direção ao banheiro.
De repente ouço seu toque.
Ouço ele me chamando.
Chego a duvidar pensando ser alucinação, mas toca de novo.
A sala está longe, os sinos estão tocando, ouço seu toque cada vez mais forte e impaciente a me chamar e tento me apressar.
Meu coração se acelera, bate com mais força a cada toque.
Quem será? Será que é a moça do telemarketing de novo? Serão meus filhos? Algum velho amigo?
Minhas pernas estão pesadas, sinto dores em todo o corpo, os sinos não param.
Meu corpo sua e soa.
Meu coração se aperta, mas já consigo avistá-lo.
Como dói. Já vou chegar.
O que está acontecendo comigo?
O telefone não pode esperar.
Por favor, espere que estou chegando.
Apóio-me na poltrona, não consigo mais, meu coração está explodindo dentro de mim.
Preciso tirá-lo do gancho, então saberão que estou aqui e atendi.
A dor que sinto é insuportável, como se mil adagas estivessem entrando em meu peito.
Chego a tocar nele, no meu velho amigo.
Mas não consigo movê-lo com todo o seu peso.
Lágrimas saem de meus olhos, de emoção, de dor, de despedida.
Os sinos tocam cada vez mais distantes, penso que todos estavam juntos e resolveram me ligar.
Quanta saudade, quanta vida esperei.
Haviam finalmente se lembrado de mim.
Os sinos param de tocar.
(A faxineira, que chegou atrasada, achou o velho morto, caído próximo a sua poltrona e com a mão estendida em direção ao telefone. Chamou a ambulância. O enfarto havia sido fatal.
No enterro estavam seus filhos, netos e alguns velhos amigos que ainda estavam vivos.
A maioria deles chorava e falava sobre momentos com o morto.)
quinta-feira, 3 de junho de 2010
Meu telefone
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